Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas
Em 1881, Machado de Assis tomava de empréstimo do autor grego Luciano de Samósata um artifício no mínimo sagaz: introduzir na ação de Memórias póstumas de Brás Cubas um narrador defunto. Não que o Diálogo dos mortos (de Luciano) tenha um narrador defunto, mas nos apresenta toda a liberdade oferecida pelo plano dos mortos. De Menipo não nos restou nada, mas seu cinismo e sua crítica a cultura ressoam em Luciano e um ou outro autor grego. Assim, Machado tem a sua disposição um narrador que não precisa se importar nem um pouco com as regras sociais, pois não está mais no plano dos vivos para sofrer as consequências.
Curiosamente, é também a Luciano que Dostoiévski recorre ao escrever seu conto Bóbok: depois de uma noite na gandaia, um rapaz bêbado acaba preso num cemitério, e presencia o diálogo dos mortos: cada um representando uma característica verificável na sociedade russa daquele período, com a qual Dostoiévski se encontrava em pé de guerra desde a publicação de seu romance de ares extremamente reacionários, Os demônios. Discutiremos todas essas questões, e a criação de uma sátira menipeia russa na próxima quinta, 31, às 19h, no nosso Clube do Livro Russo. As inscrições também podem ser feitas através do e-mail leiturasrussas@gmail.com.
Nosso outro curso, “Anton Tchékhov, Últimos contos”, será nos dias 3 e 10 de outubro, das 19h às 21h, terças, e trataremos, como já menciona o título, de seus últimos contos, famosos por serem justamente os melhores. Nos basearemos no título lançado pela Todavia, com tradução de Rubens Figueiredo, que contém os seguintes contos: "Em casa de amigos", "Iónitch", "O homem no estojo", "A groselheira", "Sobre o amor", "Um caso médico", "Coisas de trabalho", "A queridinha", "A nova Datcha", "A dama do cachorrinho", "No barranco", "Nas festas de natal", "O bispo", "A noiva". A leitura dos contos em outras traduções é bem vinda.
No nosso curso tentaremos entender como um autor que se encontra no fim do período clássico da literatura russa, como bem definiu Jakobson, é tão influente sobre o conto moderno. As inscrições podem ser feitas através do Sympla e também através do e-mail leiturasrussas@gmail.com. Venham.
Excelente essa tradução do Rubens para os contos do Tchékhov.